Vida Fácil

Com um sorriso cansado de reconhecimento, ela cumprimenta o bêbado que mora em papelões na frente do seu prédio antigo. Para um pouco ao seu lado e aceita um gole de uma garrafa qualquer oferecida com mãos sujas e boca sem dentes. Faz uma careta, cospe e recebe um gargalhada em troca.

Continua andando.

Arrasta a bolsa de alças compridas pelo chão e num das mãos de unhas vermelho-sangue descascadas nas pontas, carrega seus tamancos de saltos altíssimos. A boca já está já sem batom, os olhos borrados. Também vermelhos. Injetados.

Aquela seria a hora dos pássaros começarem a cantar na sua cidade. Mas não naquele lugar cinza de fumaça e de ódio.

Chuta uma porta e começa lentamente a subir o primeiro dos cinco lances de escada que vão dar no seu quitinete mofado. Muquifo. Cospe de novo.
- É um quarto-sala mobiliado, a descarga não está funcionando, use o balde. Mas não pode trazer macho para cá, viu? Aqui nos damos aos respeito.

Relembra fragmentos da noite e vomita num canto qualquer lá pelo primeiro andar. Canta alto para incomodar vizinhos e esquecer. Não esquece.

Pra se viver do amor
Há que esquecer o amor
Há que se amar
Sem amar
Sem prazer
E com despertador
- como um funcionário

Aquele dia acordara num lugar estranho, com o celular tocando, sempre programado para fazê-la despertar em horror. Três da tarde. Havia sangue no meio das suas pernas.
Procura sua calcinha, se limpa. Preta. Sorte. Ao vesti-la, enxerga os dois homens que roncam por perto. Reconhece os policiais de sempre. Estavam de folga e queriam se divertir. Porcos. Tenta não acordá-los e procura a bolsa. Abre. Perdera o dinheiro da noite. Mas ainda estou viva, suspira.
Quando sai do banheiro, onde tentara se recompor na frente de um espelho cinza, o mais alto deles a empurra de encontro e com a cara na parede. Tudo acaba rápido. Suando ele dá um tapa na sua bunda com uma piscadela de olho. Ela séria, o encara. Ele bate-lhe na cara.
- Sorri para mim, vadia!
Ela sorri. Consegue ir embora.

Há que penar no amor
Pra se ganhar no amor
Há que apanhar
E sangrar
E suar
Como um trabalhador


Em casa, joga a calcinha no lixo. Esfrega corpo e vê as manchas roxas nas pernas e na barriga. Está atrasada e não consegue esconder com a base barata a marca dos dentes tatuadas nas costas.
Sai correndo na chuva. A saia curta e top amarelo são substituídos por uma outra pouca roupa qualquer. Tira-a na frente de homens que bebem e gritam palavrões, enquanto se esfrega num mastro de metal frio. De costas até o chão. Arreganha as pernas na frente de um gordo senhor, pega nos peitos. Passa a língua pelos lábios e faz um pequeno gesto de quem vai arranhar alguém.
Sai do palco e senta na mesa do tal gordo. Primeiro conhaque, segundo, terceiro. Fácil, pensa. Vão para o quarto. Tempo demais, e ela já está molhada de um suor viscoso. De ambos.
Ele sente um objeto pontiagudo no seu ventre. Vê gotas de sangue surgirem. Está anestesiada demais. Já deixou de sentir àquela altura da noite.
Horas depois, limpa sangue e esperma com um pedaço de papel higiênico e se despede com um aceno do gordo.
Paga sua parte pelo uso do quarto, calça as sandálias sentada num banco alto, enquanto bebe um outro conhaque no balcão. Acende o cigarro. O homem cansado que lhe serve, tenta puxar conversa.
- Eu tentei te avisar para não pegar aquele. Ele já machucou sério muita menina por aqui. Não ia ser uma coisa boa no seu primeiro dia.
- Já acostumei com a dor, querido. – ela responde.
Sai para a noite fria. Cansada. Pega no ventre e sobe um pouco mais a saia para esconder as cicatrizes. Mais.

Ai, o amor
Jamais foi um sonho
O amor, eu bem sei
Já provei
E é um veneno medonho

Encompridou seus olhos de menina de interior, quando ele apareceu. Pai viajando, mãe foi junto. Chama ele para casa. Quer saber mais dele. Mais de si.
Ele pega na sua perna, mal chegam. Ela entende e geme. Então é isso, pensa. Ela se deixar levar pro quarto e olha nos olhos que ama para sempre, abre mais um pouco as pernas e despede-se de sua virgindade.
Grita quando sente que algo mais está para acontecer, algo que vai levá-la para além daquela dor persistente. Então chegam, inundando-a toda, ondas que quase a afogam. Ele grita o nome dele. Pede mais. Ele dá.
Espreguiça sonolenta e escuta os pássaros daquela cidade no fim do mundo anunciando manhã. Com uma mão procura amor ao lado. Sente o colchão vazio. Pega em papel. Dinheiro. E uma breve nota escrita numa página branca da bíblia que guardava na gaveta.

"Espero ki xegui. Quando falamos esses dias você num falô preço. Num devo mas paçar pela cidade."

É por isso que se há de entender
Que o amor não é um ócio
E compreender
Que o amor não é um vício
O amor é sacrifício
O amor é sacerdócio
Amar
É iluminar a dor
- como um missionário

Um carro para ao seu lado. Ela abaixa na janela e vê um casal dentro. O homem velho e feio, uma mulher na casa dos cinquenta de olhos baixos e mãos que remexem em seu colo. Combinam um preço.
- Entra- diz o homem- Você vai pro banco de trás, resmunga para a mulher cabisbaixa. Ambas obedecem.
Ele vai pegando na sua coxa, enquanto ri alto.


- Trinta anos de casamento, ela me flagrou na cama com outra. Quis sair de casa, vê se pode? Eu disse, agora tú vai ver, mulher, é eu com uma outra de verdade. Gargalha mais um pouco.
Depois. Roncos altos. A mulher está sentada numa cadeira, olhos cheios de lágrimas. Ela levanta e chega perto, limpa seu rosto e alisa seus cabelos. Abre um a um os botões daquela blusa discreta e pega delicadamente em seus seios. Se abre. Se abrem.
Ela sente o gozo da outra. Do silêncio que se segue, emerge uma voz tímida.
- Nunca tinha sentido isso antes.

Com um sorriso cansado de reconhecimento, ela cumprimenta o bêbado que mora em papelões na frente do seu prédio antigo. Para um pouco ao seu lado e aceita um gole de uma garrafa qualquer oferecida com mãos sujas e boca sem dentes. Faz uma careta, cospe e recebe um gargalhada em troca.

Continua andando.

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